A incumbência histórica da imprensa de registrar os fatos no momento em que acontecem - imprescindível para aqueles que, no futuro, dispor-se-ão a compreender o agora - gera, não raro, imprecisões conceituais que acabam por obscurecer e enviesar o debate, em prejuízo da verdade e da adequada informação do público.
Um desses temas (sobre os quais muito se fala, apesar de pairarem sob uma nuvem de desconhecimento) é a aposentadoria compulsória dos magistrados. Com frequência, a imprensa traz a notícia de um juiz punido de tal forma - sem destacar que, ao invés do que muitos podem pensar, a sanção não o livra de responder judicialmente por eventuais crimes.
Cumpre frisar - para desfazer a cortina de fumaça - que a aposentadoria compulsória é a penalidade máxima imposta em âmbito administrativo pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelos Tribunais; todavia, se a conduta envolver o cometimento de delito, o juiz poderá ser condenado criminalmente, como qualquer cidadão.
Outra mistificação diz respeito à remuneração do magistrado aposentado de modo compulsório. Diferentemente do que veicula o senso comum, o salário não é integral, mas proporcional ao tempo de serviço - e aos pagamentos realizados pelo juiz ao regime de previdência (em patamares muito maiores do que os do regime geral: cerca de 15% do vencimento bruto). Limitar os proventos proporcionais, além de uma infração aos direitos do contribuinte, equivale à geração de enriquecimento ilícito para o Estado.
Perceba o leitor que não há, nas disposições legais, nenhum privilégio, pelo contrário: uma vez submetido judicialmente à penalidade civil (que consiste, inclusive, na reparação de eventual dano), o magistrado pode perder a própria aposentadoria - e todos os aportes contabilizados durante o período de exercício da função. Semelhante situação é mais gravosa do que a dos trabalhadores das demais categorias, pois estes, quando demitidos, mesmo que em razão da prática de crimes, não perdem as contribuições previdenciárias feitas ao longo da vida.
Também passa à margem das discussões a possibilidade de uso das aposentadorias compulsórias como instrumento político, haja vista os exemplos notórios na história do Brasil, do Estado Novo à ditadura militar. Getúlio Vargas aposentou compulsoriamente seis ministros do Supremo Tribunal Federal (STF): Godofredo Cunha, Edmundo Muniz Barreto, Antonio C. Pires e Albuquerque, Pedro Affonso Mibieli, Pedro dos Santos e Geminiano da Franca. Costa e Silva repetiu o procedimento com outros três: Evandro Lins, Hermes Lima e Victor Nunes.
Há, ainda, incontáveis juízes e desembargadores que enfrentaram igual situação, como Hugolino de Andrade Uflacker, aposentado compulsoriamente em outubro de 1964 - e, em 2015, promovido "post mortem", com a inclusão de seu nome no rol de desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS).
Em 1970, no Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) foram aposentados compulsoriamente o então presidente e o vice-presidente da corte, desembargadores Alceste Ribas de Macedo e José Pacheco Júnior, respectivamente - tendo sido simbolicamente reconduzidos aos cargos apenas quando já falecidos.
Não fossem os proventos, esses homens - que nada fizeram senão atuar conforme a Constituição - teriam amargado enormes dificuldades para sustentar as próprias famílias, vítimas de retaliações que se prolongariam indefinidamente, a despeito da não comprovação de culpa e sem direito ao devido processo legal e à ampla defesa.
Responsáveis por aplicar a lei, resolver conflitos e preservar os direitos fundamentais, os magistrados fazem jus a prerrogativas que se destinam à proteção da cidadania, essenciais à independência do Poder Judiciário. A aposentadoria compulsória não é uma benesse concedida à figura do juiz, mas uma medida disciplinar necessária para a defesa da sociedade e que não viola as garantias constitucionais.
*Frederico Mendes Júnior, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)
Desmistificando a aposentadoria compulsória
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