Recentemente, o Supremo Tribunal Federal publicou o acórdão paradigma que fixou a tese-resposta ao Tema de Repercussão Geral nº 1043. Em síntese, os ministros do STF reconheceram, por unanimidade, a constitucionalidade do uso da colaboração premiada realizada em procedimento penal para a instrução de processos de natureza civil, a exemplo das ações de improbidade administrativa movidas pelo Ministério Público, e administrativa, desde que atendidos determinados critérios fixados pela corte.
O Tema estava em discussão no julgamento do Agravo contra decisão que inadmitiu Recurso Extraordinário (ARE) nº 1.175.650, interposto em face de acórdão do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR).
No caso, o MP do Paraná havia proposto ação civil pública por ato de improbidade administrativa contra mais de 24 pessoas físicas e jurídicas, por fatos relacionados à operação publicano. No âmbito dessa operação, o MP-PR investigou organização criminosa formada por auditores fiscais da Receita Estadual, contadores e empresários apontados como envolvidos em esquema de sonegação fiscal mediante o pagamento de propina [1].
O MP-PR pediu liminarmente a indisponibilidade de valores e de bens móveis e imóveis dos demandados, além da imposição das sanções previstas na Lei nº 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa – LIA).
Contudo, em relação a três réus específicos [2], que haviam firmado colaboração premiada na esfera penal, o MP-PR requereu apenas o reconhecimento judicial da prática de ato de improbidade administrativa, sem a imposição das penalidades correspondentes, de modo a atender os termos da referida colaboração. Na origem, o MP fundamentou sua posição nos seguintes argumentos:
1) O delito de corrupção é pluriobjetivo, pois o comportamento do agente viola bens jurídicos protegidos por variados ramos do direito: administrativo, penal e cível;
2) Há uma grande interpenetração do direito penal, civil e administrativo para salvaguardar os bens jurídicos afetados pela prática de atos de corrupção.
3) A persecução dos ilícitos de corrupção, em decorrência de sua natureza multifacetária, exige a intervenção de inúmeros órgãos de persecução;
4) É inegável que os ramos de direito penal, administrativo e civil, ao descreverem comportamentos típicos referentes ao mesmo fato (corrupção), precisam dialogar entre si;
5) Um colaborador deve poder espalhar os efeitos de colaboração premiada firmada para o Direito Administrativo e o Direito Civil, uma vez que tenha cumprido os requisitos exigidos pela Lei penal (Lei nº 12.850/2013), observadas, de todo modo, as particularidades específicas destes ramos do Direito;
6) A Lei Anticorrupção admite expressamente a utilização de mecanismo consensual — acordo de leniência — para obtenção de provas da prática de atos de corrupção; e
7) Os efeitos das colaborações premiadas não prejudicam eventuais apurações de ilícitos administrativos por outros órgãos públicos, pois, na hipótese de descumprimento do acordo, o Ministério Público poderá pleitear, a qualquer momento, a indisponibilidade de bens e a condenação com as sanções correspondentes aos atos de improbidade.
Ocorre que um dos réus — auditor fiscal que não celebrou colaboração premiada e cujos bens foram objeto de decretação de indisponibilidade — apresentou sua defesa na ação de improbidade administrativa argumentando, dentre outros pontos, que a ação ajuizada pelo MPPR era inconsistente, dado que a imputação da prática de ato de improbidade teria sido amparada em elementos colhidos em colaboração premiada em procedimento criminal. De acordo com o recurso interposto por esse réu, a utilização de colaboração premiada em ação de improbidade não encontraria respaldo no ordenamento jurídico brasileiro, pois:
1) O artigo 17, §1º da LIA dispõe que não é permitido transação, acordo ou conciliação em ações de improbidade administrativa, vedando, portanto, a utilização da colaboração premiada;
2) O Ministério Público não tem autorização constitucional para negociar o patrimônio público; e
3) No caso específico, o colaborador premiado não ofereceu contrapartida econômico-financeira, o que evidencia a incompatibilidade do instituto com a ação de improbidade.
O TJ-PR negou provimento ao recurso, sob o argumento de que a colaboração premiada não implica em transação ou acordo e, mesmo que fosse, o artigo 17º, §1º da LIA foi revogado pela Medida Provisória (MP) nº 703/2015. Ademais, o princípio da proporcionalidade vige na ação de improbidade administrativa, de modo que, "quem colabora de maneira importante com a investigação deve ter a pena diminuída, atenuada, ou até mesmo ser aplicado o perdão judicial, de acordo com a participação no ato de improbidade administrativa".
Inconformado, o recorrente levou a questão ao STF, argumentando que o acórdão do Tjpr violaria o artigo 37, caput e §§4º e 5º da Constituição [3], uma vez que:
1) A vigência da MP 703/2015 — que revogou o artigo 17º, §1º da LIA — teria se encerrado;
2) A concessão proposta pelo MP-PR no âmbito dos acordos de colaboração premiada relativamente à devolução do dinheiro público desviado e à indenização dos danos causados ao erário violam previsão constitucional que prevê também a suspensão de direitos políticos, perda da função pública, indisponibilidade de bens e ressarcimento ao erário nos casos de improbidade administrativa; e
3) A imprescritibilidade do ressarcimento ao erário logicamente veda atos de disposição do patrimônio público pelo Ministério Público.
Ao analisar a questão, o relator do ARE, ministro Alexandre de Moraes, ressaltou que a adequada compreensão do intrincado esquema criminoso investigado na operação publicano foi possibilitada por acordos de colaboração premiada e que os elementos constantes nos termos de colaboração foram legitimamente utilizados pelo MP-PR para subsidiar a ação de improbidade administrativa.
Na visão do ministro, a lei deve ser interpretada no contexto da evolução do microssistema legal de proteção ao patrimônio público e de combate à corrupção. Assim, a colaboração premiada, que pode infundir no ânimo do colaborador o desejo de contribuir para a comprovação da materialidade e autoria de delitos praticados contra a Administração Pública, mostra-se como valioso instrumento a ser utilizado, também, em outras instâncias, diversas da penal, quando envolvido o interesse público e o combate à corrupção.
Ao enfrentar os argumentos suscitados pela parte recorrente, o ministro relator considerou que a vedação contida no artigo 17, §1º da LIA referia-se diretamente à não aplicação de mecanismos negociais como forma de encerramento do litígio em que se discute a prática de ato de improbidade administrativa. Dito de outro modo, o referido dispositivo legal não vedava a utilização desses mecanismos — a exemplo da colaboração premiada — como meio apto à obtenção de provas.
Além disso, o ministro Alexandre de Moraes ponderou em seu voto que o reconhecimento da natureza jurídica da colaboração premiada como meio de obtenção de prova é fundamental para viabilizar sua utilização nos casos de ações de improbidade administrativa, especialmente considerando-se a complexidade dos esquemas envolvendo agentes públicos e particulares para o cometimento de atos de corrupção.
Por fim, concluiu o ministro que o acordo de colaboração premiada, mostra-se apto, como meio de colheita de provas na esfera da tutela da probidade administrativa, a favorecer a efetiva proteção do patrimônio público, da legalidade e da moralidade administrativas, e a evitar a impunidade de agentes ímprobos de maneira eficiente.
No entanto, Alexandre fixou em seu voto alguns critérios a serem observados para a utilização da colaboração premiada em ações de improbidade administrativa. Os critérios são os seguintes:
"1) Realizado o acordo de colaboração premiada, serão remetidos ao juiz, para análise, o respectivo termo, as declarações do colaborador e cópia da investigação, devendo o juiz ouvir sigilosamente o colaborador, acompanhado de seu defensor, oportunidade em que analisará os seguintes aspectos na homologação: regularidade, legalidade e voluntariedade da manifestação de vontade, especialmente nos casos em que o colaborador está ou esteve sob efeito de medidas cautelares, nos termos dos §§6º e 7º do artigo 4º da referida Lei 12.850/2013;
2) As declarações do agente colaborador, desacompanhadas de outros elementos de prova, são insuficientes para o início da ação civil por ato de improbidade;
3) A obrigação de ressarcimento do dano causado ao erário pelo agente colaborador deve ser integral, não podendo ser objeto de transação ou acordo, sendo válida a negociação em torno do modo e das condições para a indenização;
4) O acordo de colaboração deve ser celebrado pelo Ministério Público, com a interveniência da pessoa jurídica interessada e devidamente homologado pela autoridade judicial;
5) Os acordos já firmados somente pelo Ministério Público ficam preservados até a data deste julgamento, desde que haja previsão de total ressarcimento do dano, tenham sido devidamente homologados em Juízo e regularmente cumpridos pelo beneficiado."
Esses critérios foram validados por unanimidade de votos dos ministros do STF durante o julgamento virtual do ARE e serviram para a delimitação da tese-resposta para o Tema de Repercussão Geral nº 1043.
Com a publicação do acórdão paradigma sobre o tema no Diário de Justiça Eletrônico (DJe) de 05.10.2023, o efeito prático esperado é a uniformização do entendimento jurisprudencial dos tribunais em todo o país acerca da validade do uso da colaboração premiada homologada em sede penal como elemento probatório para a instrução de ações civis, incluindo as ações de improbidade administrativa, desde que observados os critérios fixados pelo STF.
[1] Operação deflagrada em março de 2015, investigou organização criminosa formada por auditores fiscais da Receita Estadual, contadores e empresários envolvidos em esquema de sonegação fiscal mediante o pagamento de propina. Além de corrupção, trata de crimes de falsidade de documentos e lavagem de dinheiro. https://mppr.mp.br/Comunicacao/Pagina/Operacao-Publicano
[2] Luiz Antônio de Souza, Edmundo Odebrecht Neto e Odebrecht Indústria e Comércio de Café Ltda.
[3] Artigo 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...) §4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
§5º A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.
Juliana Sá de Miranda é sócia da área de Penal Empresarial do Machado Meyer Advogados.
Gabriela Paredes Arcentales é advogada da área de Penal Empresarial do Machado Meyer Advogados.
Pedro Saullo é advogado da área de Contencioso do Machado Meyer Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 29 de outubro de 2023, 7h07
STF autoriza uso de colaboração premiada em ações de improbidade administrativa
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