Beatriz Abagge, uma das condenadas do Caso Evandro que teve o processo anulado pela Justiça do Paraná, disse que a tortura que sofreu para assumir a culpa pelo crime tem que ser investigada.
"Eu penso que serviu de aprendizado pra gente começar uma luta. E até para ter um Estado melhor. Quando a pessoa fala que foi torturada, tem que haver investigação. Tem que haver responsabilidade do Estado. E acho que começa uma nova luta, para responsabilizar as pessoas que nos torturaram."
"Eu penso que serviu de aprendizado pra gente começar uma luta. E até para ter um Estado melhor. Quando a pessoa fala que foi torturada, tem que haver investigação. Tem que haver responsabilidade do Estado. E acho que começa uma nova luta, para responsabilizar as pessoas que nos torturaram."
A declaração de Beatriz foi dada à apresentadora Patrícia Poeta no programa Encontro, na manhã desta segunda-feira (13). Junto com a mãe, Celina Abagge, ela ficou cinco anos presa. As duas ficaram conhecidas como as "Bruxas de Guaratuba", cidade do litoral do Paraná.
Na última quinta-feira (9), por três votos a dois, Beatriz e outros três condenados tiveram os processos anulados pelo Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR).
Para a maioria da Corte, áudios de fitas descobertos pelo jornalista Ivan Mizanzuk, e aceitos como novas provas a pedido da defesa, mostram que os réus confessaram os supostos crimes mediante tortura e cumprindo ordens.
Com a decisão, Beatriz Abagge, Davi dos Santos Soares, Osvaldo Marcineiro e Vicente de Paula Ferreira – falecido em 2011, no presídio – passaram a ser, na prática, inocentes.
Em 1992, o menino de seis anos de idade sumiu no trajeto entre a casa onde morava e a escola, e foi encontrado morto com sinais de violência extrema. Relembre abaixo.
Com a reviravolta no caso, permanece a pergunta de quem matou o menino Evandro, além de quem torturou os agora ex-condenados.
Após a revisão criminal ser definida, o Governo do Paraná disse que não se manifestaria sobre o caso porque não era parte no processo.
Em 2022, porém, o estado fez uma carta com pedido de perdão pelas torturas cometidas contra Beatriz.
Nesta sexta (10), o Ministério Público do Paraná (MP-PR) afirmou que aguarda a íntegra dos autos e do conteúdo da decisão para definir as medidas que tomará sobre o caso.
'As pessoas riam'
No Encontro, Beatriz relembrou que ela e outros ex-condenados, desde o início do caso, falavam da tortura que sofreram para assumir a culpa do crime, porém, não recebiam atenção.
Segundo Beatriz, ela foi vítima de afogamento, choque elétrico e violência sexual. Em uma ocasião, ela disse que foi torturada por mais de 10 horas.
Para não esquecer o que viveu, ela passou a escrever sobre os "flashes" que tinha do que aconteceu.
"Desde o primeiro momento falamos que fomos torturados, ninguém acreditava na gente [...] Cada vez que a gente falava em tortura, contava, as pessoas riam da gente."
"Desde o primeiro momento falamos que fomos torturados, ninguém acreditava na gente [...] Cada vez que a gente falava em tortura, contava, as pessoas riam da gente."
Na avaliação de Beatriz, ela e os demais envolvidos no caso foram uma "desculpa perfeita" para justificar uma série de desaparecimentos de crianças que aconteciam no Paraná à época.
"Muitas crianças estavam desaparecidas. E o estado precisava dar uma reposta. E essa foi a resposta perfeita. Tinha uma pressão. Tinha que achar alguém, um culpado eles que tinham achar. E eles achado um culpado, esqueceram de todas as outras crianças que não foram investigadas até hoje".
A revisão criminal
O pedido de revisão criminal foi apresentado em 2021. Na época, pareceres técnicos apontaram que houve violência física durante os depoimentos.
Em agosto de 2023, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) aceitou o uso dos áudios completos como prova.
Na quinta (9), os desembargadores Gamaliel Seme Scaff, Adalberto Xisto Pereira e o desembargador substituto, juiz Sergio Luiz Patitucci, votaram a favor entendendo que os condenados foram torturados para fazerem uma falsa confissão.
Os magistrados chegaram a essa conclusão justamente por conta das fitas reveladas. Os áudios completos se tornaram públicos em 2020 no podcast Projeto Humanos, que contou a história do caso e, mais tarde, virou série documental da Globoplay.
"Em nenhum momento que eles confessaram em juízo a prática do crime. Eles só confessaram na fase pré-processual, na fase do inquérito policial. E assim mesmo, só depois da tortura. Depois, se lá na frente, vier a conversar, tem a fita que aparecem confessando, já tinham sido torturados. Estavam presos. Já estavam com medo", defendeu Xisto Pereira.
"Em nenhum momento que eles confessaram em juízo a prática do crime. Eles só confessaram na fase pré-processual, na fase do inquérito policial. E assim mesmo, só depois da tortura. Depois, se lá na frente, vier a conversar, tem a fita que aparecem confessando, já tinham sido torturados. Estavam presos. Já estavam com medo", defendeu Xisto Pereira.
O desembargador Patitucci corroborou, e disse que todas as provas obtidas "foram decorrentes de tortura".
Na sessão, os desembargadores Miguel Kfouri Neto e Lidia Maejima votaram contra por entenderem que as fitas precisariam ter passado por perícia.
Não cabe recurso da decisão no TJ-PR. O MP, autor da ação que condenou os quatro acusados, se manifestou favorável à revisão durante a sessão de quinta
Por meio de nota, o advogado Antonio Figueiredo Basto, que defende os agora inocentados, afirmou que "a justiça foi feita". Além disso, destacou o trabalho do jornalista Ivan Mizanzuk e afirmou, ainda, que os agora inocentes vão pedir indenização na Justiça.
Quem eram os acusados
Sete pessoas foram acusadas de envolvimento no assassinato:
Airton Bardelli dos Santos
Francisco Sérgio Cristofolini
Vicente de Paula
Osvaldo Marcineiro
Davi dos Santos Soares
Celina Abagge
Beatriz Abagge
Na época, as investigações apontaram que Beatriz Abagge e a mãe dela, Celina Abagge, então primeira-dama de Guaratuba, teriam encomendado a morte do menino em um ritual. Elas passaram mais de cinco anos na cadeia.
Outras cinco pessoas foram incriminadas, entre elas, Davi e Osvaldo, que também foram presos acusados de sequestrar e matar o garoto.
O caso teve cinco julgamentos diferentes. Um dos tribunais do júri, realizado em 1998, foi o mais longo da história do judiciário brasileiro, com 34 dias.
Na época, a Beatriz e Celina foram inocentadas porque não houve a comprovação de que o corpo encontrado era do menino Evandro.
O Ministério Público recorreu e um novo júri foi realizado em 2011. Beatriz, a filha, foi condenada a 21 anos de prisão. A mãe não foi julgada porque, como ela tinha mais de 70 anos, o crime prescreveu.
As penas de Osvaldo Marcineiro e Davi dos Santos se extinguiram pelo cumprimento. O último réu, Vicente de Paula, morreu por complicações de um câncer em 2011 no presídio onde estava.
Desaparecimento de Evandro
O menino Evandro desapareceu em 6 de abril de 1992. À época, o Paraná vivia o desaparecimento de diversas crianças na região.
Segundo a investigação, ele estava com a mãe, Maria Caetano, funcionária de uma escola municipal de Guaratuba, e disse a ela que iria voltar para casa após perceber que havia esquecido o mini-game. Depois disso ele nunca mais foi visto.
Após um corpo ser encontrado em um matagal, no dia 11 de abril de 1992, o pai de Evandro, Ademir Caetano, afirmou à época no Instituto Médico-Legal (IML) de Paranaguá ter reconhecido o filho, por meio de uma pequena marca de nascença nas costas.
Conforme informações da época, o corpo estava sem o couro cabeludo, olhos, pele do rosto, partes dos dedos dos pés, mãos, com o ventre aberto e sem os órgãos internos.
Ademir Caetano também era funcionário público da cidade, ele trabalhava na prefeitura de Guaratuba. Maria e Ademir tinham outros dois filhos, Márcio e Júnior. Evandro era o caçula.
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