A nova atualização dos dados do Mapa Nacional da Violência de Gênero mostra que metade das mulheres brasileiras já sofreram algum tipo de violência doméstica ao longo de suas vidas. Contudo, parte delas ainda não se reconhece exatamente como vítima. O Mapa é um projeto de parceria entre o Observatório da Mulher Contra a Violência (OMV) e o DataSenado, ambos do Senado Federal, o Instituto Avon e a Gênero e Número.
O levantamento aponta que 48% das brasileiras ouvidas já passaram por alguma situação de violência doméstica e familiar. Mais de 20 mil mulheres brasileiras foram entrevistadas e, deste total, 30% reconheceram a violência vivida e a nomearam como tal.
Porém, há um número relevante de mulheres que não entendem que o que passaram é um caso de violência: 18% ainda não se identificam espontaneamente como vítimas. Porém, quando foram apresentadas a essas mulheres a situações específicas de violência doméstica, elas admitiram ter passado por elas. Isso mostra que o número de brasileiras que sofrem violações é muito maior do que os registros oficiais.
Os números foram apresentados durante evento organizado pelo Pacto Global da ONU no Brasil, em paralelo a 68ª Comissão sobre a Situação da Mulher (CSW), principal evento de igualdade de gênero das Nações Unidas, em Nova York, na quinta-feira (14) passada na sede da ONU.
"É imperativo assumirmos o compromisso de enfrentar a violência contra a mulher, utilizando essas informações como catalisadoras para a implementação de estratégias mais eficazes e assertivas", comenta Daniela Grelin, diretora-executiva do Instituto Avon.
A executiva analisa os dados como "alarmantes" e destaca que essa discrepância entre a realidade vivida e a percepção de violência demanda uma resposta imediata. "É preciso criar um ambiente onde todas as mulheres se sintam capacitadas a reconhecer e denunciar a violência que sofrem", diz.
Apesar da incidência de violência doméstica ocorrer de maneira relativamente uniforme em todo o território nacional, os Estados da região Norte, como Amazonas (57%), Amapá (56%), Rondônia (55%) e Acre (54%), atingem patamares ainda maiores do que os índices nacionais. A região Sudeste também chama atenção, com Rio de Janeiro e Minas Gerais, ambos com 53%. Esta é a primeira vez, desde 2005, que a Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher apresenta recortes estaduais.
Há poucos dias, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), divulgou levantamento que mostra que, em 2023, cinco dos nove Estados que compõem a Amazônia Legal tiveram taxas de feminicídio superiores à média do país: Mato Grosso, com 2,5 casos para cada 100 mil mulheres, liderando o ranking nacional, seguido de Acre, Rondônia e Tocantins, com taxas de 2,4 casos para cada 100 mil, e Roraima logo atrás, com 1,9, na sexta posição brasileira. A média nacional foi de 1,4 caso para cada 100 mil mulheres, totalizando 1.463 mil feminicídios em 2023, o maior número em nove anos. Ao menos 10.655 mulheres foram vítimas do crime entre 2015 e 2023 em todo o país, de acordo com o FBSP.
O levantamento mostra ainda que aproximadamente sete em cada 10 brasileiras conhecem alguém que sofreu violência doméstica. Esse índice é ainda maior nos Estados das regiões Norte e Nordeste: cerca de 68% das brasileiras que afirmam terem uma amiga, familiar ou conhecida que já vivenciou agressões ou abusos em razão de gênero, com destaque para as tocantinenses (75%), acreanas (74%), amazonenses (74%), pernambucanas (72%) e alagoanas (72%).
Outro dado destacado pela pesquisa é a estimativa de mulheres que passam por violência doméstica ao longo da vida. De 40 milhões de mulheres brasileiras, mais de oito milhões de paulistas e mais de 4 milhões mineiras já vivenciaram algum tipo de situação violenta.
Tayná Leite, líder de Direitos Humanos do Pacto Global da ONU no Brasil, reitera que a violência contra a mulher não é só um problema do setor público. "Cada vez mais percebemos que a violência contra a mulher é um tema que transcende o espaço privado, muito mais do que acreditávamos no passado", diz. "Ele faz parte não apenas da agenda do poder público, mas também da agenda corporativa, não apenas porque a violência impacta a saúde física e a mental das funcionárias e, portanto, sua produtividade no trabalho, mas também porque as empresas têm um grande potencial de edcação e prevenção", completa.
Para a especialista, as empresas podem adotar ferramentas de comunicação e educação visando a prevenção dos casos, mas também identificar gatilhos e sinais que alertam para algum caso que esteja acontecendo, como, por exemplo, faltas recorrentes. Leite alerta ainda que a educação e conscientização também pode ser direcionada aos homens, uma vez que muitos dos agressores trabalham no setor corporativo.
"As empresas podem ser apoios do ponto de vista de renda e formarem um ecossistema de acolhimento e oferta de empregos", por exemplo.
Em 2021, foi aprovada no Congresso uma nova lei de licitações e contratos administrativos (Decreto nº 11.430) que exige a contratação de 8% da mão de obra constituída de mulheres vítimas de violência.
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Sobre o Mapa Nacional da Violência de Gênero
Lançado em novembro de 2023, o Mapa Nacional da Violência de Gênero é uma plataforma que reúne os principais dados nacionais públicos e indicadores de violência contra as mulheres do Brasil, incluindo a Pesquisa Nacional de Violência contra as Mulheres, a mais longa série de estudos sobre o tema no país. Dos dias 21 de agosto a 25 de setembro de 2023, 21.787 mulheres de 16 anos ou mais foram entrevistadas por telefone, em amostra representativa da opinião da população feminina brasileira.
Vitória Régia da Silva, presidente e diretora de Conteúdo da Gênero e Número também reitera que é fundamental a disponibilidade e a análise dos dados de violência de gênero por região, pois podem trazer informações relevantes sobre as barreiras de acesso à informação e aos canais de denúncia em cada território. “Sem dados, não temos políticas públicas eficazes para o enfrentamento da violência contra mulheres”, comenta.
Maria Teresa Prado, coordenadora do Observatório da Mulher contra a Violência do Senado Federal, comenta que a pesquisa com recorte estadual é “um marco importante”, porque fica claro que é preciso ampliar ainda mais a amostra para chegar a respostas mais locais. “No futuro, queremos que o diagnóstico seja ainda mais profundo. Sabemos que quanto mais nos aproximarmos dessa mulher, dessa vivência, maior será nossa contribuição”, afirma.
Porém, além dos resultados estaduais, a questão da subnotificação é algo que está no radar o tempo todo. “Ao olharmos para o que não está registrado, o que não é declarado, podemos encontrar possíveis falhas na comunicação do problema, seja por parte da mulher que sofre violência e não procura ajuda, seja por parte do Estado que ainda não atende às necessidades dessa mulher”, comenta Prado.
Mulheres têm dificuldade de se reconhecer como vítimas de violência doméstica
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