Coordenadora de Parcerias do Instituto Avon
Recentemente, fomos impactadas por uma série de notícias acerca de contratos realizados entre namorados e namoradas a fim de resguardar, de maneira mais explícita, alguns combinados entre o casal. Juridicamente, contratos de namoro visam oficializar que duas pessoas se comprometem afetiva e socialmente em um namoro, mas não querem assumir determinados vínculos jurídicos, como acontece em casos de união estável. Esses arranjos tentam majoritariamente proteger que patrimônios materiais sofram divisões diante de um rompimento.
O que pode constar nas cláusulas de contratos de namoro? De acordo com advogados que trabalham com esta modalidade, para que um contrato de namoro tenha validade, as pessoas envolvidas não podem morar juntas ou ser financeiramente dependentes uma da outra, contextos que costumam ser associados ao critério de “constituição de família”, presentes no arranjo da união estável. Portanto, mesmo se realizado em cartório ou por meio de advogados, se ferir determinadas condições básicas, o contrato pode ser questionado e se tornar nulo.
Também é possível, embora perca valor legal, que o contrato seja estabelecido pelas partes de maneira privada, sem registros oficiais. Nestes casos, as cláusulas informais podem ser ainda mais customizadas e inusitadas: expectativas de comportamento, demonstrações de afeto e aparentes banalidades do cotidiano, como de quem seria a responsabilidade de passear com o cachorro ou de colocar o lixo para fora.
À primeira vista, há duas formas um tanto excludentes de olhar para esses arranjos: de um lado, podem ser entendidos como aparentemente pouco românticos, mas bastante práticos para um eventual questionamento referente a certos direitos. Por outro, contratos de namoro podem ser defendidos enquanto ferramentas úteis para exercícios supostamente saudáveis de diálogo e negociações, nomeando e reconhecendo vontades e combinados.
Relacionamentos amorosos são feitos de expectativas explícitas, condições implícitas e acordos constantes. No Brasil, estatisticamente, também são cenário de muita violência contra mulheres. Metade das mulheres brasileiras acima dos 16 anos já sofreu algum tipo de violência doméstica, de acordo com a Pesquisa Nacional da Violência Contra a Mulher, (DataSenado/OMV), e 7 em cada 10 brasileiras conhecem uma mulher próxima que já passou por violações em relações afetivas e familiares, segundo dados do mesmo levantamento.
Diante deste cenário, entendemos que uma série de questões podem e devem ser feitas aos contratos de namoro. Além da proteção a bens materiais, para que outros fins os contratos de namoro vêm sendo mobilizados? Eles podem trazer riscos para as mulheres? E quando contratos de namoro tentam impor ou delimitar comportamentos desejáveis ou aceitáveis: qual o limite entre acordo, obediência e controle? Ou mesmo entre o controle e a violência? Quais são as fronteiras entre proteção ao patrimônio e a violência patrimonial?
A advogada Xarmeni Neves, em conversa com a jornalista Natuza Nery, no podcast “O Assunto”, deu nome às situações que vivenciou ao formalizar contratos desta natureza: “algumas beiram à ilegalidade, como, por exemplo, configurar no contrato a possibilidade de uma lesão corporal de natureza leve”. Em outras palavras, contratos de namoro podem tentar se antecipar à agressão física, um crime segundo nosso ordenamento penal e a Lei Maria da Penha. A propósito: não se pode consentir que alguém cometa um crime contra sua integridade.
Miriane Ferreira, outra advogada entrevistada pela jornalista, aponta que “fica muito evidente que o contrato de namoro é uma forma de continuar tentando tirar o direito da mulher ao patrimônio adquirido e dizer que aquilo era um namoro, quando, na verdade, era uma verdadeira união estável”.
A violência patrimonial é uma das cinco formas de violência doméstica e familiar descritas pela Lei Maria da Penha, que este ano completa 18 anos em vigor, definida como qualquer conduta que subtraia ou destrua bens, instrumentos de trabalho, documentos pessoais ou recursos econômicos da vítima. Uma lei amplamente conhecida e reconhecida pela população brasileira, mas que ainda carece de maiores conversas sobre seus mecanismos de proteção e acolhimento, ou mesmo sobre algumas de suas definições. Entre elas, a de violência patrimonial, nem sempre visível e identificável pelas vítimas.
Na conversa sobre contratos de namoro se esconde o perigo de situações de violência patrimonial, em que uma parte conta com recursos para mobilizar advogados e instrumentos jurídicos a fim de evitar que a outra – muitas vezes a mulher – tenha acesso aos bens e ao dinheiro construídos durante a relação. Quando realizado com o intuito de mascarar situações de união estável ou em contextos em que o consentimento de uma das partes pode ser refutado, o contrato de namoro pode e deve ser contestado.
Acordos construídos em contextos de medo, ameaça, insegurança e violência devem sempre ter sua validade jurídica e moral questionadas. A anuência dada sob ameaça ou medo, dentro de uma relação violenta ou frente a uma pessoa que tem muito mais poder, não pode ou deve ser considerada um consentimento legítimo.
Os contratos se assentam na premissa de que as partes envolvidas sejam igualmente livres, esclarecidas e detentoras do poder de recusar. No cenário violento das relações afetivas e amorosas entre homens e mulheres no Brasil, infelizmente, não podemos garantir tais condições.
Muitos dos adeptos desse tipo de contrato recorrem a ele baseados em traumas de relações passadas, onde houve prejuízo patrimonial e emocional. Um contrato de namoro, além de não garantir que isso não se repita, por sua fragilidade jurídica, pode ainda perpetuar relações de controle e violência contra as mulheres.
O que os contratos de namoro (não) dizem?
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